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domingo, 23 de setembro de 2012

ENCONTRO COM A PALAVRA


"Aqui jaz Fernando Sabino. Nasceu homem, morreu menino". A frase poética escolhida pelo autor de "O Encontro Marcado" para a sua lápide expõe de maneira sucinta, mas explícita, um pouco da personalidade, dos desejos e anseios de um protagonista da palavra. Um autor cuja pena produziu, desde a mais tenra juventude, textos fundamentados na sensibilidade capaz de captar a angústia humana como poucos de sua geração souberam fazer. Sobre ele, um dos maiores críticos literários brasileiros, Antonio Cândido, avalia: "Fernando tinha um olhar infalível para os pormenores expressivos e uma capacidade prodigiosa de invenção verbal". Com a morte de Sabino, encerra-se um tempo singular que, por um desses desígnios inexplicáveis, teve o mérito de reunir, em uma mesma época e em um mesmo cenário - a cidade de Belo Horizonte -, o famoso quarteto de escritores mineiros composto por Sabino e pelos amigos Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos. Sabino foi o único dos quatro a chegar aos 80 anos. O único a sentir a ausência corrosiva provocada pela perda das grandes amizades. Suas dezenas de romances, crônicas, novelas, correspondências e relatos de viagem trazem em sua essência o cerne de um dom raro: o de fazer dessas histórias uma ponte entre a ficção e a reflexão. Um elo entre o eu e o outro. Entre o particular e o universal. A narrativa de Sabino instiga os leitores à realização de uma busca rumo ao autoconhecimento - virtude característica dos grandes mestres da palavra. Foi assim com o personagem Eduardo Marciano que, desde 1956, com a publicação de "O Encontro Marcado", prossegue arrebatando corações e mentes. A escrita fluente e a leveza que dava a textos de temáticas muitas vezes angustiantes nasciam de um cuidado extremista de Sabino com a palavra. O mesmo que dedicou à música. Eclético, como todos que possuem espírito inquieto, Sabino era baterista de uma banda de jazz - estilo caracterizado pelo predomínio do improviso sobre a técnica. Assim também era Sabino na literatura: artista cujo compasso ritmado era marcado pela junção da técnica e da sensibilidade. A perda do escritor mineiro já seria motivo suficiente para que o reino das palavras ostentasse luto por prazo indefinido. Entretanto, dois dias antes, o mundo das letras, da filosofia, do pensamento dava adeus ao filósofo Jacques Derrida, famoso pela teoria da "desconstrução", cujo princípio era desfazer o texto do modo que foi previamente organizado para revelar significados ocultos. Suas pesquisas apontavam que, tanto na literatura como nas demais formas de arte, é possível observar - por meio de análises detidas - numerosas camadas de significados não necessariamente planejados pelo criador da obra. Assim como Sabino, Derrida era o único sobrevivente de um grupo ímpar de personagens que ajudaram a compor a história de uma geração. Juntos, Althusser, Barthes, Deleuze, Foucault, Lacan e Derrida tornaram-se conhecidos como "os pensadores de 1968". Desde então, o filósofo contribuiu sobremaneira para o entendimento de questões essenciais à compreensão do século 20. O autor de "Espectros de Marx" não se furtava, mesmo já muito doente, o direito de viajar pelos continentes lançando luzes sobre temas variados e polêmicos como a literatura, a política, a ética, os conflitos árabe-israelenses, a luta contra o aparthaid, os últimos atentados em solo americano, a rapidez dos processos tecnológicos. Derrida era um cidadão do mundo, um homem que viveu apaixonadamente e defendeu sua ideologia e seus propósitos de todos os modos. A justiça, os direitos humanos, a conquista da cidadania e a dignidade da pessoa humana eram, invariavelmente, bandeiras que empunhava em favor da edificação de um tempo mais pacífico e igualitário para povos e nações. Foi ele, também, o criador, em 1983, do Colégio Internacional de Filosofia, a que presidiu até 1985. Sem dúvida, as vidas de Sabino e de Derrida são exemplos de entusiasmo e de dedicação. Convites a uma existência mais pró-ativa, passional, conectada à nossa verdade interior e à procura da felicidade individual que se expande para o coletivo. Foram-se dois grandes homens. Ficam duas grandes lições. Que todos tenhamos sabedoria para apreender os ensinamentos que deixaram em seus livros e que os manterá, para sempre, vivos. Afinal, como afirmou Derrida em uma das tantas entrevistas que concedeu: "(...) a vida é sobrevida. Sobreviver no sentido corrente quer dizer continuar vivendo, mas também viver após a morte".

domingo, 16 de setembro de 2012

Picadeiro (quando o palhaço chora)


A arte de todo palhaço está em fazer rir a multidão que lota o circo. Algumas pessoas ali, já felizes buscam apenas mais um momento de alegria, outras pinceladas com o a cor negra da tristeza procuram alguma razão pra voltar a sorrir. Lá no centro, alvo de todos os olhares está o palhaço, o verdadeiro artista da alegria. Todos na platéia já sabem que em algum momento ele dará um chute nas nádegas de outro palhaço, que se espatifará no chão e que também irá esguichar água no rosto de alguém usando a rosa que leva em seu bolso. A verdadeira graça não está nas coisas que o palhaço faz, mas sim em como ele faz. Ele é o verdadeiro artista que faz a mesma coisa todos os dias com a mesma paixão e vontade de fazer rir como se fosse a primeira vez. O palhaço anima o circo, ele vive o circo, ele é o circo. Mas o que acontece quando a chama ardente leva embora o sonho feito de lona? Quando o picadeiro torna-se uma lembrança, quando as luzes que iluminavam o palhaço podem ser vistas apenas em seus sonhos, quando as palmas e gargalhadas durante o espetáculo tornam-se desejos e não mais realidade é quando o palhaço gentilmente tira a maquiagem de seu rosto e deixa mostrar o homem que ali habita. O que antes fora uma pintura perfeita rapidamente se torna apenas um borrão que com mais algumas passadas do algodão magicamente some e leva consigo toda cor do palhaço. Sem circo onde atuar nem multidão para aplaudir o palhaço deixa uma lágrima escorrer de seus olhos e como um rio que encontra o mar ela faz seu caminho por entre as rugas daquele rosto até tocar o chão. Triste lágrima aquela, tão pequena que cabe na ponta de um dedo, mas com uma tristeza que só quem a despejou sabe o tamanho que tem. Sem circo não há alegria, não há aplausos, não há arte, não há vida. Às vezes em meus momentos loucos de solidão, sentado no meu picadeiro vazio me pergunto quantos de nós somos hoje palhaços a chorar. Me pergunto quantos de nós vimos há dias, meses ou anos os nossos circos se deixarem levar pelas chamas do tempo, da rotina, do cansaço, da falta de dedicação, da falta de vontade, da falta de amor. Nossos circos que antes eram nossos portos seguros contra a tempestade agora são apenas uma imagem linda e saudosa que habita em nossas mentes e traz sentimentos maravilhosos em nossos corações. Quantos de nós queríamos pelo menos por mais uma única vez poder ter o direito de um espetáculo final com a casa cheia, só mais uma cena, só mais uma noite para fazermos de novo aquilo que sempre fizemos tão bem. Apenas mais uma chance para sermos mais artistas e menos lágrimas. Mas o grande senhor da vida não nos deixa jamais voltar e dar um último espetáculo, pois cada momento é único e talvez por isso a saudade seja tão mais pesada que o mar. Quando as chamas consomem o sonho e o transformam em fumaça leve que é levada com o vento, o que resta a nós palhaços é mais uma vez fazer as malas e seguir em frente deixando para trás uma lágrima de cada vez; seguir em frente com a esperança de que um dia possamos novamente ter o nosso circo de volta e enfim voltarmos a ser