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quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O Homem Nu


Fernando Sabino Ao acordar, disse para a mulher: — Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum. — Explique isso ao homem — ponderou a mulher. — Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago. Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento. Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos: — Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa. Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro. Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão! Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão: — Maria, por favor! Sou eu! Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão. Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer. — Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado. E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror! — Isso é que não — repetiu, furioso. Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu. — Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho: — Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu... A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito: — Valha-me Deus! O padeiro está nu! E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha: — Tem um homem pelado aqui na porta! Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava: — É um tarado! — Olha, que horror! — Não olha não! Já pra dentro, minha filha! Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta. — Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir. Não era: era o cobrador da televisão. Esta é uma das crônicas mais famosas do grande escritor mineiro Fernando Sabino. Extraída do livro de mesmo nome, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 65. Agradeço a Cristhiano Rocha Pereira pela lembrança. Tudo sobre o autor em "Biografias".

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Recado ao Senhor 903 - Rubem Braga

Vizinho, Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal - devia ser meia-noite - e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 - que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será convidado a se retirar às 21 :45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas - e prometo silêncio. ...Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: "Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou". E o outro respondesse: "Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela". E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz. Maio, 1945

terça-feira, 21 de agosto de 2012

A humanidade sempre foi uma ilusão à toa

ESTOU DE SACO cheio; vou telefonar para o Nelson Rodrigues para ver se ele me dá alguma luz, lá do céu. Disco o telefone preto. Não quero mais falar sobre esta guerra santa, mas caio sempre neste tatear confuso, tentando raciocinar com as luzes do bom senso, de causa e efeito, da psicologia. Mas o terror não se explica. Ali, entre o Tigre e o Eufrates, é que nasceu o mundo e pode ser que acabe ali também. O telefone toca. Já ouço as risadinhas dos serafins que ficam contando piadinhas de sacanagem. — Nelson... sou eu, o Arnaldo... — Você me ligando, rapaz... como um telefonista de si mesmo... Achei que tinha me esquecido... — Eu jamais te esqueço... mas estou apavorado com a História humana... — Pára com isso, rapaz, a História não existe... Não é que a História acabou, como disse aquele japonês do Pentágono; não, a História nunca existiu... Ela foi uma invenção daquele alemão, o tal de Hegel, que, aliás, está ali sentado numa nuvem, chorando lágrimas de esguicho numa cava depressão... O sujeito achava que a "história" se movia em direção a uma "espiritualidade absoluta" e, de repente, descobre que meia dúzia de malucos, cheirando a banha de camelo, com camisolas imundas e com a face alvar da estupidez completa, está transformando a vida humana numa sinistra piada de português... ah! ah!... A História humana é um pesadelo humorístico. Você achava que a vida era movida pelas "relações de produção" e coisa e tal... Pois, está aí... a única coisa que existe é a loucura humana... Aqueles macacos que, na Idade do Gelo, se esconderam numas cavernas sujas pra não morrer de frio tiveram de inventar a tal da "linguagem", para preencher o vazio entre eles e a natureza... O homem não é superior aos outros animais, não. Ele é inferior, ele veio com defeito de fábrica... O Nietzsche, aquele cara esquisitão que também anda por aqui, bigodudo, muito sério, falando sozinho, escreveu que "num planeta distante, animais inteligentes inventaram o Conhecimento. Foi o instante mais arrogante e mentiroso do universo. Mas, depois de alguns suspiros da Natureza, o planeta acabou e os tais animais inteligentes morreram..." O Nietzsche é um craque... Sempre que eu posso, tomo um cafezinho com ele. — Mas Nelson, o herói suicida é invencível... — Engraçado... todo mundo está impressionado com os suicidas... A coisa mais fácil do mundo é o sujeito se matar, rapaz. Na minha infância profunda, toda semana, casais de namorados se jogavam do Pão de Açúcar, os amantes faziam pactos de morte e tomavam guaraná com formicida, as mocinhas ateavam fogo às vestes e se jogavam dos prédios como busca-pés de São João... Era lindo... as mulheres suspirando por um suicídio de amor... — Mas esses caras acham que o suicídio leva ao céu... Aliás, você viu algum deles por aí? — Olha... a gente só vai para o céu em que acredita... Os árabes não vêm para cá... Se bem que o paraíso deles até que não é longe... Outro dia, eu resolvi dar uma espiadinha lá... Rapaz, parecia o baile do Bola Preta! Os terroristas eram como artistas de televisão, dando autógrafos, cheios de macacas-de-auditório em volta. O Muhamad Atta, aquele chefe-suicida, estava deitado numa cama de ouro e rubis, com odaliscas do Catumbi rebolando a dança do ventre, ali, feito a Feiticeira... Tudo que eles jamais tiveram no deserto eles têm aqui em cima. "Pois, agora, rapaz, vou te dizer uma coisa 'social': os reis da Arábia Saudita, da Líbia, do Iêmen, todos adoram que o inimigo seja o americano, vivem felicíssimos nos seus palácios com cascatinhas artificiais e filhote de jacaré nadando dentro, enquanto os miseráveis batem cabeça para Alá e não percebem que são os otários de Maomé... Isso é que é o haxixe do povo! — Nelson, você ficou marxista aí no céu... — O Marx me chama de "reacionário", mas me ouve muito... Ele anda chateadíssimo com as bobagens que escrevem sobre ele, inclusive amigos da Academia... Eu disse para ele: "Olha, Marx, a burrice é uma força da natureza, feito o maremoto"... Ele vive repetindo isso, achou uma graça infinita... Bom sujeito, o Marx... — É... mas a História andou mil anos para trás... — Rapaz, nunca saímos da barbárie... pensa bem... tivemos duas guerras mundiais num século, sem contar Vietnã e coisa e tal... Se os alemães fizeram aquilo tudo, se os americanos derreteram 150 mil em 30 segundos em Hiroshima, imagine aqueles cretinos... Reparou que eles parecem um homem só ? Todos calmos, com a certeza da verdade lhes iluminando a fisionomia... A loucura é calma, o louco não tem dúvidas... Por isso, eles vão ganhar sempre... A razão é um luxo de franceses... — Mas e o futuro da humanidade... — O mundo nunca foi feliz... esse negócio de paz e felicidade global é invenção do comércio americano... O que houve agora é que os terroristas jogaram a gente de volta para dentro da tal "História". Além do mais, isso tinha de acontecer... Como o homem ia suportar aquela paz americana, com tudo arrumadinho como um supermercado... A loucura é a revolta do animal domesticado dentro de nós... Esse papo da Humanidade toda dando milho para os pombos na praça é lero-lero... Deus não quer isso. Vai olhar a Bíblia, o Torá; é tudo no "olho por olho"... Lembra a Inquisição? Deus é violento... (tô falando baixo que ele tá ali perto consolando o Hegel) . — Mas o ser humano... — Rapaz... a humanidade é uma ilusão. "Tudo que é real é irracional, tudo que é irracional é real." Se o mundo acabar, não se perde absolutamente nada... — E nós? — Agora sim, seremos o país do futuro. Graças a Deus, eles, os americanos, vão nos esquecer um pouco... Aí, a gente pode ir construindo a nossa grande Bahia intemporal, nosso Rio transcendental, nosso grande carnaval permanente. Finalmente, o subdesenvolvimento servirá para alguma coisa... — Deus te ouça, Nelson... ( Arnaldo Jabor )

domingo, 5 de agosto de 2012

AMIZADE DE LOUCOS


"Meus amigos são todos assim: metade loucura, outra metade santidade. Escolho-os não pela pele, mas pela pupila, que tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. Escolho meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta. Não quero só o ombro ou o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos. Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos, nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice. Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto, e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou, pois vendo-os loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a normalidade é uma ilusão imbecil e estéril" Fernando Pessoa

sábado, 4 de agosto de 2012

Ignorância Política

Quando eu penso em eleições no Brasil, a primeira palavra que me vem à mente é ignorância. Não sei se existe esse termo do título do post, mas é a verdade. Eu sempre gostei de política, o que não quer dizer necessariamente que eu entendo tudo sobre, mas sempre me interessei. Desde pequeno achava o máximo eu ter a sensação de poder sobre os meus direitos e deveres como cidadão do mundo, e logo que fiz 16 anos tirei meu título de eleitor. Assistia muito ao horário eleitoral gratuito (que, por sinal, virou tanta tiração de sarro com a cara do eleitor que eu até desisti de assistir), ao noticiário e adorava as aulas de geopolítica. Por isso acabei me tornando uma pessoa bem crítica nesta área. E pra ajudar ainda tenho um amigo que estuda para ser diplomata e volta e meia me manda artigos sobre o assunto. Mas, sinceramente, acho que nunca senti tanta vergonha de ser cidadã deste país como sinto neste ano. Sério. Sempre fui do tipo patriota e tal. Mas a política brasileira me causa repulsa. Os chamados moradores do Brasil mais ainda. Eu não me conformo com o rumo destas eleições. Eu não me conformo em ver como as pessoas são alienadas. Eu não consigo nem me expressar, tamanha minha indignação.